Jesus e o Lockdown

Cacau Marques
4 min readApr 4, 2021

A pandemia do novo coronavírus colocou os cristãos em um dilema: devemos parar os cultos para evitar o contágio ou devemos manter as programações? Quem não participa de uma comunidade de fé dificilmente entenderá essa encruzilhada. Provavelmente pensarão “Ora, se shoppings, mercados e até escolas fecharam, por que a igreja será diferente?”. A questão é que, para os cristãos, a prioridade da vida é o serviço a Deus. O culto (que em inglês é chamado de service) é a expressão comunitária desse serviço. Em época de tristeza e dor, como agora, o cristão é motivado a buscar ainda mais a comunhão com o seu Senhor. A adversidade é vista como um desafio à sua fidelidade. “Importa mais servir a Deus do que aos homens” disseram os apóstolos em Jerusalém diante da autoridade que tentava impedi-los de pregar.

Como cristão protestante e um apaixonado pela celebração cristã, eu não posso me opôr a esse sentimento. Não há nada que eu considere mais importante em minha vida do que ser fiel a Deus. É o sentido de toda a minha existência e o fundamento pelo qual eu interpreto todas as coisas ao meu redor. Compartilho com meus irmãos da visão de que devemos em tudo honrar o nome do Salvador do mundo. Contudo, diferente de vários deles, eu sustento que a melhor forma de honrar a Deus nesse momento é não promovendo cultos. E acredito estar seguindo o Senhor Jesus Cristo nessa convicção.

As reuniões dominicais são tradição da maior parte das linhas do cristianismo. Há também um grupo minoritário, mas bastante relevante, de sabatistas cristãos que adotam a guarda do sábado. A origem das duas práticas é a mesma: as reuniões de celebração e comunhão dos cristãos primitivos que, por sua vez, originaram-se das reuniões de sábado nas sinagogas judaicas. O sábado era o dia separado para a santificação, segundo a lei de Moisés. Nesse dia, o hebreu deveria abster-se de uma série de afazeres. As diferentes linhas do judaísmo propunham formas diferentes de guardar o sábado, mas todas impunham restrições ao trabalho nesse dia.

O sábado foi adotado como um dia propício para reuniões nas sinagogas, mesmo que elas nem existissem no tempo em que a Torá foi dada a Moisés. E foi num desses encontros sabatinos que Jesus Cristo entrou em conflito direto com alguns fariseus (Mateus 12.1-14, Marcos 2.23-3.6, Lucas 6.1-10). Encontrando um jovem com a mão ressequida, o Messias curou milagrosamente sua deficiência diante dos olhos zelosos de religiosos que prezavam pelo descanso sagrado. Isso foi motivo para acender a ira em seus corações e desencadear conspirações contra a vida do Nazareno.

O tema do sábado foi um dos pontos de ensino de Jesus sobre uma nova forma de encarar a espiritualidade. Ao invés de servir a Deus com os sinais exteriores da Lei, o fiel deveria interiorizar o espírito das Escrituras e então agir por este sentido. A Torá deveria transformar os corações e não só as práticas. Por isso, Jesus ensina que cuidar do próximo é mais importante do que guardar o sábado. Até porque todos quebravam o sábado por algum motivo. Os que possuíam animais não deixavam de salvar a vida de seu gado quando este caía em um buraco no dia do descanso (Mt.12.11), os sacerdotes que trabalhavam no sábado não eram punidos por estarem exercendo sua profissão nesse dia (Mt.12.5). Isso evidenciava que havia motivos que eram considerados justos pelos próprios fariseus para que o sábado fosse quebrado. E é isso que Jesus ensina: o motivo mais nobre para quebrar o sábado era salvar uma vida. “O que é permitido fazer no sábado: o bem ou o mal, salvar a vida ou destruí-la?” (Lc. 6:9) perguntou o mestre retoricamente.

O apego religioso ao culto dominical desconsiderando o potencial destrutivo para tantas vidas não é o que Jesus promove em nossos corações. Aquele que é o Senhor do Sábado (Mc. 2.28) quebrou a guarda para salvar uma vida. Talvez alguns dirão: “Mas a Lei em si não proibia que se curasse no sábado”. E a Lei, ou algum outro texto da Bíblia, exige que nos reunamos aos domingos?

E há um outro ponto: Os fariseus salvavam suas ovelhas feridas em dia de sábado, mas impediam a cura de um irmão, pois valorizavam mais o patrimônio do que o próximo. Da mesma forma, muitos exigem o retorno dos cultos, mesmo que não vejam problema em alguém ter uma profissão com escala dominical. Será o salário e o emprego mais importantes do que a vida? E o pior, muitos celebram o fato de que médicos e enfermeiros tenham plantões aos domingos para salvar aqueles que foram contaminados pelo coronavírus em seus cultos.

O Senhor do Sábado já disse: “O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado.” (Marcos 2:27). Por que queremos sacrificar vidas sob o argumento da religiosidade? “Se vocês soubessem o que significam estas palavras: ‘Desejo misericórdia, não sacrifícios’, não teriam condenado inocentes.” (Mt. 12:7). Estou convencido de que o Senhor Jesus pede de nós o zelo pela vida e saúde do próximo nesse momento. Afinal de contas, essencial é viver.

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Reflexões sobre a espiritualidade cristã e a sociedade

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